Edifício do Teat(r)o Oficina é palco de disputa territorial
Simbólico, o caso acende uma das mais importantes discussões da nossa era: que cidades queremos construir para nós?
São muitas histórias, as datas quase se misturam. Uma tarde de domingo de 1985. Ou 1986. O diretor teatral José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, a sua então assistente Catherine Hirsch e o arquiteto Edson Elito compram um carneiro assado e vinho e se dirigem à obra em curso da que seria a nova sede do Teat(r)o Oficina, Rua Jaceguai, n° 520, Bixiga, São Paulo.
A última, projeto de 1967 de Flávio Império (1935-1985) e Rodrigo Lefèvre (1938-1984), fora uma resposta a um incêndio na casa dos anos 20, já transformada pelo arquiteto Joaquim Guedes (1932-2008) em um teatro do tipo sanduíche.
“A ideia era reaproveitar partes remanescentes, mas, naquela tarde, diante dos escombros, tivemos o vislumbre de deixar tudo limpo, sem nenhuma divisão, com um palco em rampa no declive de 3 m do terreno”, conta Edson.
Dava-se ali a gênese do revolucionário teatro-rua, eleito em 2015 pelo jornal britânico The Guardian como o melhor do mundo (em segundo lugar, ficou o grego Epidauro). “A Lina Bo Bardi depois aprimorou e ficou tudo aberto. Quem entra pela primeira vez leva um choque com as arquibancadas, as galerias, os janelões laterais ligando interior e exterior, o pé-direito de 13 m”, continua.
E é este conceito – a ideia de uma rua aberta para fora – que torna a história do Oficina tão simbólica em um dos debates mais relevantes da arquitetura hoje: a vida nas cidades, cada vez mais complexas.
Segundo estudo de 2016 da Organização das Nações Unidas (ONU), o atual modelo de urbanização global é insustentável, exigindo “novas formas de colaboração, planejamento, governança e financiamento”, visto que, até 2030, 66% da população mundial habitará os centros adensados.
Tal convivência, muitas vezes, resulta em conflitos, alguns deles exemplares – convite à reflexão de todos. É o caso da companhia Oficina Uzyna Uzona, cuja trajetória se embaralha com a de seu endereço, ocupado desde 1961.
“Minha vida se viu confundida com este lugar, que virou o meu destino”, resumiu Zé Celso. Após aquele incêndio, ele seguiu em exílio, nos anos 70, durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Ao voltar, na década de 80, se inicia o embate com o grupo do apresentador Silvio Santos, que compra lotes na quadra para empreendimentos de sua construtora, a Sisan.
E essa disputa assistiu recentemente a um novo ato: desaprovadas em 2016, as três torres residenciais propostas pela Sisan no entorno do Oficina, desenhadas pelo arquiteto Gil Carvalho, conquistaram em outubro deste ano, após um recurso, parecer favorável do mesmo órgão que as havia negado, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), que tombou o Oficina em 1982 (mais tarde, vieram os tombamentos municipal e federal, este do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan).
“O projeto das torres foi recusado em 2016 por não dialogar nem com o teatro nem com o bairro, cheio de outros bens tombados, como o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e a Casa de Dona Yayá. E nada foi modificado para esta nova apresentação. Foi uma decisão rápida para uma questão complexa”, avalia a arquiteta Sarah Feldman, integrante do conselho desde 2015 e um dos votos contrários ao parecer.
Para as arquitetas e cenógrafas do Oficina, Carila Matzenbacher e Marília Gallmeister, houve um regresso no olhar para a área em questão. “Ela tem de ser analisada sob a ótica do território urbano, por ser uma confluência de cinco imóveis tombados. Houve o entendimento de que as torres não afetariam a configuração atual do Oficina e do bairro, o que é absurdo, claramente uma postura política”, defende Carila.
A presença do janelão lateral, outro ganho do projeto de Lina e Edson, é fundamental para entender a relação do teatro com a cidade à sua volta. “Ele passou a ser uma das coisas mais importantes. Esse é um dos últimos terrenos livres do centro de São Paulo. Do ponto de vista urbano, tem de haver um debate sobre a possibilidade de torná-lo público”, argumenta Edson.
Como resposta ao caso, o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) divulgou, em novembro, uma nota pela preservação do local, na qual afirmou que “a construção das torres descaracterizará de forma violenta e irreversível o bem tombado”.
Para o presidente do IAB de São Paulo, Fernando Túlio Salva Rocha Franco, observar a escala do bairro é essencial. “É possível conciliar desenvolvimento imobiliário com a preservação da nossa história. Aqui, trata-se de um terreno privado, então o direito de proposição deve ser respeitado. Mas os projetos precisam considerar seu impacto na paisagem e, no caso do Bixiga, ela é singular.”
A carta aberta pedia ainda atenção rigorosa por parte do Iphan, cujo tombamento deste caso julga vital a relação visual entre o espaço interno e o entorno. “A Federação Panamericana de Associações de Arquitetos (FPAA), com 33 países, também manifestou apoio”, revela Nivaldo Vieira de Andrade Junior, presidente nacional do IAB.
São muitas histórias. E a próxima está ainda em processo: qual a melhor solução? Para quem? “Essa discussão tem de sair da relação entre cada lado e perguntar que cidade queremos construir”, diz o arquiteto Silvio Oksman, membro do Condephaat até o ano passado.
Contatados, Sisan e Gil Carvalho informaram não estarem autorizados pelo Grupo Silvio Santos a se manifestar nem divulgar o projeto. O Condephaat, por sua vez, publicou uma carta detalhando a decisão de outubro.
Já o Oficina e seus 60 integrantes atuais sonham com o chamado Parque do Bixiga para ampliar aquela ideia de rua. “O que idealizamos para a área é derivado do plano da Lina e do Edson, que previa um teatro-estádio aberto nos fundos do lote, além de um maciço verde”, conta Marília.
A proposta cresceu durante uma residência na Bienal de Arquitetura de São Paulo de 2015, com convidados do exterior e daqui, como o grupo Supersudaca e o arquiteto mineiro Carlos Teixeira. “Esse projeto é perfeitamente exequível. Os espaços públicos são também reflexo de uma atitude generosa – ou não – do setor privado em todas as suas instâncias”, diz Carlos.
A obra urbanística faria um caminho sinuoso pelo centro de São Paulo, conectando diferentes pontos de vegetação. Uma rua já quase estrada, como descreveu Lina Bo Bardi em texto de 1989, sobre o Oficina: “Teatro que sai nas praças, ruas, que invade a cidade. Esse teatro foi projetado para expandir-se no espaço urbano em uma praça verde e pública, alcançar o outro lado da rua e colocar o pé na estrada”.